quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A literatura Barroca e a propagação da fé

O PODER DA LITERATURA MORALIZADORA DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA E O CONFLITO DO HOMEM BARROCO EM GREGÓRIO DE MATOS

O presente trabalho tem por objetivo analisar a produção poética
de dois importantes autores do período barroco. São eles: Padre
Antônio Vieira e Gregório de Matos.
O crescente individualismo que marginalizou a espiritualidade
na Renascença é combatido no Seiscentismo. Neste último período
revela-se a tendência a uma doutrinação dirigida. A cristianização
tenta dar retorno às questões religiosas, que o homem havia ignorado
no seu interesse terrenalista do período anterior. Instaura-se, assim, a
dúvida, o conflito, a tensão psicológica de um homem que tentava
conciliar as necessidades materiais (da carne) e as aspirações religiosas
(espirituais).
Padre Antônio Vieira serve ao ideal da literatura moralizante,
espiritual, com vistas a doutrinar o homem que estava perdido em
desgraças neste mundo. Já Gregório de Matos, reflete em suas obras
o homem em conflito com os valores terrenos e espirituais, que tenta
conciliar as duas idéias opostas e se perde na dúvida. Será apresentado
um sermão de Padre Antônio Vieira, que serve ao propósito de
mostrar sua postura no Barroco e um poema de Gregório de Matos,
que exemplificará o conflito do homem aos quais eram dirigidos tais
sermões.
PADRE ANTÔNIO VIEIRA
Padre Antônio Vieira viveu no contexto do Barroco, em que
se cultivava a cultura do excesso, juntamente ao saber ornamental da
palavra. A oratória, cuja função social era a propagação da fé e do
catolicismo, adquire grande importância priorizando as regras da eloqüência
e produzindo um discurso engenhoso. O belo está presente
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como ornamentador do discurso. Os sermões de Padre Antônio Vieira
servem a este propósito: propagar a fé com os recursos da retórica.
Conceptista, ele presta especial atenção ao conceito.
Padre Antônio Vieira acreditava ser escolhido por Deus para
uma missão na Terra: disseminar a palavra de Deus. “Vieira, como
porta-voz deste Senhor Absoluto, se dirige a um mundo desordenado,
a um mundo que caminha para a destruição, tal como ele, se não
tivesse tido o privilégio de ser o escolhido.” (Ferreira, 1999, p. 1179)
Ele acreditava que as palavras continham em si mesmas o seu significado
– na sua própria essência – significado este, determinado por
Deus. A língua portuguesa, para ele, é uma língua fundamental, “onde
todos os seus elementos já contém em si mesmo o valor universal
da Verdade. Desta forma, além dos fonemas e da etimologia, as letras
também portam um sentido.” (ibidem, p. 1178). Como exemplo,
destaca-se o sermão dedicado a Nossa Senhora do Ó, em que ele fala
o tempo inteiro do significado da letra “o”, destacando-a como figura
geométrica e como fonema. Sendo assim, o sentido desta palavra está
associado à sua forma e ao seu som. A ver:
Sermão da Nossa Senhora do Ó. A figura mais perfeita e mais capaz
de quantas inventou a natureza, e conhece a Geometria, é o círculo. Circular
é o Globo da terra, circulares as Esferas Celestes, circular toda a
máquina do Universo, que por isso se chama Orbe, e até o mesmo Deus,
se, sendo espírito, pudera ter figura , não havia de ter outra, senão a circular.
O certo é, que as obras sempre se parecem com seu Autor: e fechando
Deus todas as suas dentro em um círculo, não seria esta idéia natural,
se não fora parecida à sua natureza(...) O primeiro círculo, que é o
mundo, contém dentro de si todas as coisas criadas: o segundo, incriado
e infinito, que é Deus, contém dentro em si o mundo, e este terceiro, que
hoje nos revela a fé, contém dentro em si ao mesmo Deus: Ecce concipies
in útero, et paries Filium: hic erit magnus, et Filius Altissimi vocabitu4.
Nove meses teve dentro de si este círculo a Deus; e quem pudera imaginar,
que estando cheio de todo Deus, ainda ali achasse o desejo capacidade
e lugar para formar outro círculo? Assim foi; e este novo círculo
formado pelo desejo, debaixo da figura e nome do O, é o que hoje particularmente
celebramos na Expectação do parto já concebido : Ecce
concipies, et paries. De um e outro círculo, travados entre si, se comporá
o nosso discurso, concordando ( que é a maior dificuldade deste dia) o
Evangelho com o título da Festa, e o título com o Evangelho. O mistério
4 Lc 1 [:31] [E eis que em teu ventre conceberás, e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de
Jesus. Este será grande e será chamado do Altíssimo; e o senhor Deus lhe dará o trono de
Davi, seu pai]
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do Evangelho é a Conceição do Verbo no ventre virginal outro círculo; o
que pretendo mostrar, em um e outro, é que assim como o círculo do
ventre virginal na Conceição do Verbo foi um O que compreendeu o Eterno.
Tudo nos dirão, com a Graça do Céu, as palavras que tomei por
tema: Ave Maria. (Vieira, 2002, p. 11)
As letras, para Vieira, carregam em si mesmas um sentido.
Podemos, assim, ver expressa no “Sermão da Nossa Senhora do Ó, a
idéia de língua fundamental: a idéia do círculo para representar o fonema
[o] não foi por acaso; tem um significado. A forma (letra) O,
sendo um círculo, representa o desejo: quando alguém deseja algo,
exclama oh! [O] da eternidade: Deus (pai); [O] do desejo: Jesus (filho).
Para Vieira, o mistério da Santíssima Trindade está contido na
letra “O”. E o grande milagre que ele celebra neste sermão é a indagação
de, como um círculo tão pequeno (o útero de Maria), pôde
guardar a vida de um ser tão importante, que é o filho de Deus. Não
poderia haver, então, figura mais perfeita para representar o ventre,
do que o útero de uma grávida.
O símbolo do eterno (desejo de Maria de ver o filho de Deus
concedido) é associado ao símbolo da imensidão, que é o fato de haver
tão grande ser em tão pequeno círculo, ambas representadas pela
letra “O”. Daí o sentido único que Padre Antônio Vieira dá as coisas.
Tudo tem sentido atribuído e valor associado.
A esse valor de significação que Vieira atribui a tudo e, por
conseguinte, tudo ter um mistério a ser decifrado, a segunda parte do
sermão bem exemplifica:
Uma das maiores excelências das Escrituras Divinas, é não haver nelas
nem palavra, nem sílaba, nem ainda uma só letra, que seja supérflua,
ou careça de mistério. Tal é o misterioso O que hoje começa a celebrar, e
todos estes dias repete a Igreja, breve na voz, grande na significação, e
nos mistérios profundíssimo. Mas contra este mesmo princípio, parece
que no nosso texto, com ser tão breve, não só temos uma letra, senão
uma sílaba, e uma palavra supérflua. E que sílaba, e que palavra? In uter:
dizendo o Anjo à Senhora: Ecce concipies, et paries: que conceberia, e
pariria o Filho de Deus, bem claramente se entendia não só a sustância
do mistério, senão o modo e o lugar; e que este havia de ser o sacramento
virginal do ventre santíssimo. Supérfluo parece logo, sobre a palavra
Concipies, acrescentar, In utero. Mas esta embaixada deu ao Anjo, mandou-
a Deus, e refere-a o Evangelhista: e nem Deus, nem o Anjo, nem o
Evangelhista, haviam de dizer palavras supérfluas. A que fim, pois,
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quando se anuncia este oráculo ( que foi o maior que veio, nem virá jamais
do Céu à terra), se diz e se repete por três bocas, uma divina, outra
Angélica, e outra mais que humana, que o mistério da Conceição dos
Verbos e há de obrar sinaladamente no útero ou ventre da Mãe: Ecce
concipies in utero? Sem dúvida, porque era tão grande a novidade, tão
estupenda a maravilha, que necessitava a Fé de toda a expressão. Haverse
Deus de fazer o homem, novidade foi que assombrou aos Profetas
quando a ouviram. Porém que esse mesmo Deus, sendo imenso, se houvesse
ou pudesse encerrar em um círculo tão breve, como o ventre de
uma Virgem: Inútero? Esta foi a maravilha que excede as medidas de toda
a capacidade criada. (Vieira, 2000, p. 12)
GREGÓRIO DE MATOS
Gregório de Matos Guerra (1636-1696) nasceu em Salvador,
estudou em colégio de jesuítas, formou-se doutor em Coimbra. Retornou
ao Brasil e morreu em Recife. Suas obras adquirem grande
importância como documento da vida social dos Seiscentos e pelo
nível artístico atingido. É considerada a primeira manifestação nativista
da nossa literatura. Petrarca e Camões o inspiraram.
A musa gregoriana teve múltiplas dimensões: sacra, moral,
erótica, satírica e escatológica. Ele descreveu em seus poemas o lírico-
amoroso, o religioso e o satírico. Porém, a vertente mais original
de sua obra foi a sátira.
Podemos apontar um contraste em suas produções literárias:
ora satiriza irreverentemente, ora se torna poeta devoto. A intenção
da sua sátira é moralizadora. A sua lírica religiosa é a que mais se
aproxima dos fundamentos do Barroco e a lírica satírica é a que mais
se afasta, pois se volta para a realidade baiana do século XVII. Daí
uma ambigüidade na escolha de seus temas. Em suas poesias de tema
religioso pode-se destacar uma retórica nobre e moralizante. O poeta
reflete sobre a inconstância do mundo, revelando claramente a influência
de Camões. Em sua lírica fica evidente o tema da contrariedade
barroca, através do abundante uso de antíteses e oxímoros. Ele aborda
questões próprias do período barroco como a efemeridade da vida,
o pessimismo e o desengano do mundo. O poema abaixo , destaca
essas características:
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MORALIZA O POETA NOS OCIDENTES DO SOL
A INCONSTÂNCIA DOS BENS DO MUNDO
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não dê constância,
E na alegria sinta-se a tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza na inconstância. (Rocha, 2004, p. 6)
O poema reflete a efemeridade da vida. Pessimista, sentindo o
desengano do mundo o eu lírico se indaga sobre o sofrimento que se
prolonga e a alegria que, tão rápido, termina, assim como o Sol, que
“não dura mais que um dia”. Pode-se perceber o uso de jogos de antíteses
como exemplo, dia/noite; Luz/noite escura; tristeza/alegria. O
uso destas antíteses reflete o estado contraditório da condição humana,
à luz da temática barroca. E remete a uma antítese maior, própria
da reflexão barroca e que abrange todas as outras antíteses: vida/
morte. É a dualidade antitética barroca.
Na terceira estrofe, onde o eu lírico parece querer dar uma solução
no problema da Luz e da formosura, que não duram, temos o
paradoxo que revela o pessimismo do homem barroco, ao acreditar
não haver jeito para este mundo. “... E na alegria sinta-se tristeza.”.
Termina por achar, que só pode haver luz se houver sombra, ou seja,
o mundo possui dois lados opostos. E por isso tem “a firmeza somente
na inconstância”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentou-se mostrar neste trabalho, como se pretendia, de um
lado, doutrinar o homem no intuito de propagar a fé católica. Do outro,
o conflito de se tornar alvo de um interesse objetivando fortale81
cer a Igreja Católica, que perdia sua força. Assim, a dúvida do homem
barroco é exemplificada numa literatura em que predomina o
excesso, o exagero, a linguagem extremamente exuberante, a utilização
de figuras de linguagem como a antítese, o paradoxo, o oxímoro
e a hipérbole.
As alegorias de Padre Antônio Vieira, presente em seus sermões,
revelam sua adesão à corrente conceptista, que valoriza as idéias,
a propagação de conceitos , a linguagem mental. O rebuscamento
de Gregório de Matos revela sua adesão ao cultismo , que valoriza
a imagem, a linguagem cromática, servindo assim, à reprodução
da sua angústia.

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